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“POR QUÊ UM PEDACINHO DA GENTE NÃO PODE CONTINUAR VIVENDO?” afirma Saly Moreira

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Curitiba 20 de novembro 1988

SALY MOREIRA, presidente do Banco de Olhos de Curitiba, presidente da Sociedade Brasileira de Lentes de Contato e Córnea (Soblec), presidente da Associação Brasileira de Mulheres Médicas, vice-presidente da Associação Nacional de Banco de Olhos, professora da Faculdade Evangélica de Medicina do Paraná, é médica oftalmologista. Saly nos conta nesta entrevista o seu dia-a-dia, e a sua luta pelos seus ideais, e confessa ser apaixonada pelo que faz. Esta é a Dra. Saly Moreira, Sra. Dr. Carlos Augusto Moreira.

IZZA – Você é presidente da Associação Brasileira de Mulheres médicas. O que seria essa Associação?

SALY – Ela é filiada à Associação Internacional de Mulheres Médicas, depois temos as seções, subseções em cada estado. Há a Associação de Mulheres médicas, seção do Paraná e a subseção de Ponta Grossa, a subseção de Londrina, a seção do Rio de Janeiro, a de São Paulo e assim por diante. Não existe no Brasil inteiro, mas em vários estados, e uma das mais atuantes é a de Mato Grosso do Sul, em Campo Grande. Enfim, temos as seccionais e estas secionais podem ter subseções e cada uma tem a sua diretoria independente, só é filiada à nacional, assim como a nacional é filiada à internacional.

IZZA – Qual seria o objetivo dessa Associação?

SALY – E congregar as médicas de todo o Brasil, proporcionando amizade entre elas, desenvolvimento científico e cultural. Com estes objetivos, promovemos jornadas, cursos, boletins informativos e já temos planejada a próxima jornada que será em 1990, em Campo Grande. A nossa programação já está feita até lá. Um dos principais objetivos em minha gestão é divulgar essa Associação entre as academias para que as pessoas voltadas à medicina apresentem desde estudantes às associações, trabalhos científicos, porque ultimamente o estímulo tem sido grande para que façam trabalhos em grupo, principalmente com o objetivo de olhar e estudar os problemas da população, de saúde e os problemas relacionados com a comunidade em geral.

Nós fazemos as jornadas de dois em dois anos, porque a Associação Internacional realiza congressos, também de dois em dois anos. O próximo será em Seul, e a hospedagem das médicas é arranjada em casas de família. Aqui no Brasil, intercalamos as nossas jornadas com as da Internacional. Além disso, temos reuniões cientificas durante o ano. A nacional promove geralmente um encontro de quatro em quatro meses, conseqüentemente temos oportunidade de tomar mais sólida a amizade entre as médicas, e nesses encontros não predomina a parte social. Há uma Assembléia no início do ano e outra no fim do ano, mas primamos pelo aperfeiçoamento científico, pela atualização e pelo estudo dos problemas ligados à comunidade. O tema das jornadas é sempre de interesse médico geral em benefício da população. O próximo será “Educação para a Saúde”. Escolhemos o tema, às vezes semelhante ao da Internacional, quando gostamos, para vermos os trabalhos aqui no Brasil e encaminharmos para serem apresentados (os melhores) na Internacional.

IZZA – Desta vez foi escolhido o mesmo tema?

SALY – Nós elegemos “Educação para a Saúde” e lá foi escolhido “O Estudo do Câncer nas Mulheres e Crianças”, uma pesquisa do que existe de novidades no estudo do câncer. Nós aqui, achamos que estamos necessitando fazer educação para a saúde, devido ao emprego de tóxicos. Veja que nossos temas se relacionam com a comunidade. Profilaxia no sentido. Um ponto importante que deve ser olhado pelos nossos dirigentes, felizmente esse ponto tem merecido bastante atenção. Saúde e educação são os temas que caminham juntos.

IZZA – Qual é a sua especialidade como médica?

SALY – Sempre trabalhei, e minha área é oftalmologia. Sou professora também na Faculdade Evangélica de Medicina do Paraná, de Oftalmologia.

IZZA – E quanto ao Banco de Olhos?

SALY – Sou presidente do Banco de Olhos de Curitiba. Temos vários no Estado, mas há doze anos atuamos intensamente, promovemos campanhas, comparecemos em outros centros onde somos solicitados. Esse Banco trabalha para aumentar o número de doações espontâneas e também visa o aperfeiçoamento técnico-cirúrgico do transplante de córnea. Aumentando o número de doações, consequentemente há mais condições de atendimento. É uma sociedade civil sem fins lucrativos. O Banco de Olhos não opera. Trabalha no sentido de conseguir cada vez mais doações para possibilitar a realização
do transplante em nossa comunidade.

IZZA – Existe rejeição das pessoas quanto à doação de córnea?

SALY – Há doze anos atrás, quando o Banco foi fundado, eu tinha até receio de pedir ou falar sobre doações, porque, muitas vezes era mal interpretada, recebia resposta indelicadas. Me recordo que uma vez convidei uma mulher para participar da diretoria e ela me respondeu: “Você primeiro, antes de pedir deveria me perguntar se sou favorável à doação de córneas.” Logicamente que isso deprime, mas não desanimamos, fomos em frente sempre, trabalhando e, hoje em dia, fico satisfeita quando me pedem para que eu fale sobre o Banco de Olhos. É difícil, mas graças a Deus a mentalidade está mudando. O povo deve ser conscientizado da necessidade da doação porque, quando morremos, a primeira coisa a ser destruída são os olhos e então por que um pedacinho da gente não pode continuar vivendo? Felicidade é continuar e ser útil a alguém.

IZZA – Como procedem as pessoas conscientizadas?

SALY – Quando chega a hora, telefonam, avisam o Banco de Olhos, e nos recebem apesar do nervoso, com muito carinho. Recebemos cartas e mandamos também cartas de agradecimento. Quem doa faz um enorme benefício em prol da humanidade. Agora as pessoas já pedem para doar.

IZZA – Qual seria o processo de doação?

SALY – O nosso trabalho consiste na pessoa doar em vida. O segundo passo seria a pessoa trabalhar para que a família aceite e avise o banco no caso de necessidade, se algo acontecer. Nós respeitamos os familiares. Se alguém doou e os familiares estão muito deprimidos e não desejam a retirada das córneas, nós respeitamos os sentimentos, mesmo que a pessoa tenha desejado isso em vida. Acho que, se a pessoa doou e avisou a família que esse é o seu desejo, a família deveria respeitar. O número de doações é enorme, mas o número que chega ao Banco é pequeno, exatamente pelo problema de conscientização dos familiares. Estou sentindo um resultado muito maior atualmente, porque a fila, dos que necessitam do transplante esta menor.

Os casos de urgência têm preferência, mas normalmente reunimos a ordem cronológica de inscrição. Por exemplo, uma úlcera de córnea prestes a perfurar, tem que ser atendida urgentemente, para não ocorrer como no Nordeste, que houve necessidade, emergência e por falta de material foi necessário implantar uma córnea de galinha por quinze dias ou um mês, mas veja, a pessoa se submeter a anestesia geral por tão pouco. Agora também estamos recebendo córnea pela Associação Pan-americana de Banco de Olhos, porque nosso banco está filiado a essa Associação. Em casos de emergência, somos atendidos prontamente.

IZZA – E como chegam essas córneas?

SALY – São usados meios especiais de conservação, e esses meios a gente importa, e são muito dispendiosos. Facilita, porque podemos nos preparar. Muitas pessoas são do interior e até serem avisados, se locomoverem até aqui, tudo demora e a cirurgia não exige tanta emergência porque as córneas estão perfeitamente conservadas, e isso é possível por oito ou dez dias.

IZZA – Como sobrevive o Banco de Olhos?

SALY – Com auxilio da população em geral. Se vamos fazer uma campanha, me comunico com o banco. Por exemplo, na última campanha, o Bradesco me deu dez mil cartões de doações. Tive que ligar para São Paulo pedindo, e consegui. O Banco Real nos ofertou decalques, a Ótica Visão nos deu as faixas, e eu solicitei ao diretor da Faculdade Evangélica do Paraná que liberasse, no dia, os estudantes do 4ª ano, os alunos que têm a cadeira de oftalmologia para que ficassem em vários pontos da cidade, com cartões de doações, para receberem as pessoas que quisessem contribuir. Também as esposas dos Leões (Lions) nos auxiliaram muito nesta campanha, que foi de grande valor. Além de explicar, e conscientizar a população, recebemos grande número de doações. Pusemos numa barraca na Feira do Sesc e me emocionei quando vi, num dia de chuva, uma fila de pessoas doando seus olhos. Por isso senti que meu trabalho está tendo resultado. Valeu todo o sacrifício que fiz até hoje. Quando me convidam para dar explicações sobre o assunto, sempre compareço, nem que tenha que me ausentar do consultório por algumas horas.

IZZA – O Banco de Olhos se encarrega da operação?

SALY – Como te disse, o Banco não opera, mas realiza trabalhos de pesquisa. Temos microscópio e estamos introduzindo, na especialidade, o aprendizado da sutura através do microscópio, porque é uma cirurgia microscópica. O paciente que necessita, vai a seu médico de confiança e o médico vê se aquela patologia será realmente curada pelo transplante de córnea. Assim, o paciente deve ir, com o nome do médico, seu diagnóstico, o endereço, se inscrever no Banco de Olhos que, de posse da córnea e sendo a vez desse paciente, liga para o médico e comunica a pessoa ao mesmo tempo e os dois estando avisados, entregamos a córnea para o médico que realizará o transplante. Daí por diante, será tudo entre a pessoa e o médico. Isso pode ser feito também através do Inamps.

IZZA – Acho importante essa explicação, porque muitos desconhecem o processo usado pelo Banco de Olhos.

SALY – Claro, precisamos de uma estrutura, porque o trabalho do Banco não é somente coletar essas córneas: precisam ser retiradas com técnica e material e esterilização necessária 365 dias do ano, nos mais variados horários, em qual- quer dia da semana. Temos estrutura porque a nossa sede é na Faculdade Evangélica de Medicina do Paraná, e temos residentes que estão fazendo especialização, que já fazem cirurgia. Lá, temos todo o equipamento necessário, esterilizado para que eles levem até o local da retirada. Eles são avisados pelo bip e sempre temos um médico responsável pelo pronto socorro, que em caso de necessidade atenderá prontamente. Neste setor, o Hospital Evangélico, junto com a Faculdade está bem evoluído. Assim muitos transplantes já foram realizados.

IZZA – E a Sociedade Brasileira de Lentes de Contato e Córnea?

SALY – Sou presidente. Nos dias 29, 30 e 31 de outubro realizamos o 2ª Congresso Internacional de Lente de Contato e Córnea, juntamente com o 13ª Simpósio da Associação Paranaense de Oftalmologia, que tem como presidente Dr. Antonio Vantuil Samrara. A Soblec congrega mais de dois mil oftalmologistas e é muito ativa. Trimestralmente fazemos um boletim informativo. Tomei posse em 87 e já estamos preparando o 4ª boletim.

IZZA – Atualmente como anda o setor de lentes de contato?

SALY – A tecnologia evoluiu muito. Existem muitos tipos. Primeiro vieram as rijas de plástico, depois, na década de 60, chegaram as gelatinosas e agora existe uma infinidade de tipos. Para uso de uma lente gelatinosa, por um período maior, prolongado, elas necessitam ser bastante finas e ter um alto conteúdo aquoso. Os cuidados de higiene devem ser grandes. O que temos sentido, pelo número de complicações que têm surgido, é que as lentes de contato no momento pertencem ao âmbito exclusivamente médico. As últimas que surgiram são as gás-permeáveis e permitem a fisiologia da córnea, o desenvolvimento e sua função, seu metabolismo, sua nutrição porque passam o oxigênio vindo do ar atmosférico. A lente é um anteparo, não deixa de ser.

Os tipos são variados, algumas podem ficar mais tempo, outras são mais permeáveis ou menos permeáveis. Nós, até dentro da oftalmologia já temos uma sociedade. Importante a atualização pelo número de material que surge dia a dia, porque eu acho que a parte técnica cabe aos técnicos na confecção da lente, mas na adaptação da lente de contato, eu acho importantíssimo frisar para conscientizar a população neste sentido: a adaptação deve ser feita pelo médico, porque ele tem instrumentos e conhece as patologias, e tem as condições para diagnosticar.

O técnico deve fazer, confeccionar as lentes, mas, adaptar, cuidar, pôr, ver e verificar a possibilidade de uso ou não, cabe ao médico. Então eu acho que a adaptação e o segmento do paciente que usa a lente de contato deve ser exclusivamente de âmbito médico. Minha luta é essa, conscientizar o povo, os técnicos e os médicos da necessidade de que isso deve ser assim. Então, o técnico faz a lente da melhor forma possível e nós adaptamos e vemos até o que precisa melhorar nessa lente. Há lugar para todos, cada um cuida de seu setor.

IZZA – É complicado o uso de uma lente, não é?

SALY – É complicado e existem compêndios com trabalhos extraordinários mostrando as complicações, as lesões que uma lente pode determinar por má indicação, por má adaptação, por falta de conhecimento das patologias, por falta de instrução do paciente, isto, não da parte do médico e sim do técnico que adapta. E importantíssimo o conhecimento das substâncias para limpeza que surgem dia a dia para conservação das lentes. Existem inúmeros laboratórios, então o médico tem que ter conhecimento do é melhor para aquele paciente, porque existem muitos produtos tóxicos ou alérgicos para determinados pacientes.

Cada indivíduo tem que ser tratado como tal. Eu fiz um curso em Atlanta, no Congresso da Academia de Lentes de Contato, sobre lentes de uso prolongado, tanto gelatinosas quanto gás permeáveis, mostrando as complicações que podem advir com determinado tipo ou outro; como devem ser adaptadas e depois recebi uma carta dizendo, que os médicos têm por obrigação explicar aos pacientes que uma lente gelatinosa ou gás permeável (que permitem a passagem do oxigênio através de seus poros) não são eternas, pois, às vezes, duram um ano, as vezes mais, por isso, nos Estados Unidos surgiram as lentes descartáveis.

IZZA – Como seriam essas lentes descartáveis?

SALY – As vezes são usadas por oito dias e, quando o paciente começa a sentir alguma coisa, joga fora e põe outra. Ainda assim está escrito que se a pessoa sentir qualquer sintoma, qualquer alteração, que procure seu oftalmologista, porque elas são adaptadas por eles.

IZZA – Saly, e sobre essas lentes usadas somente com o objetivo de mudar a cor dos olhos, tão em moda atualmente?

SALY – Os cuidados devem ser idênticos, porque essa lente é igual às outras quanto à necessidade de cuidados, lavagem e esterilização. O paciente deverá ser examinado para ver se não há uma patologia que contraindique seu uso. Eu, como médica, contraindico seu uso para dormir porque isso não é fisiológico, e pode trazer até uma lesão de córnea que pode evoluir para uma úlcera de córnea, e uma patologia até mais séria se não for cuidada. Como falei, os cuidados são iguais aos de outras lentes e terá que ser tratada da mesma maneira, com acompanhamento médico. O dever de todo o médico não é só curar mas também orientar para evitar. Uma lente gelatinosa, com função de mudar a cor dos olhos, cada pessoa é uma pessoa e não é porque sua amiga usa e não tem problemas que você poderá usar.

IZZA – Você é apaixonada pelo que faz, não é?

SALY – Tenho uma família de médicos. Meu sogro era oftalmologista, professor de anatomia, meu marido, Carlos Augusto Moreira também é oftalmologista e atualmente é diretor da Faculdade Evangélica. Meus dois filhos e noras são oftalmologistas e minha filha estuda medicina. Gosto daquilo que faço, das lentes de contato, da profissão de médica. Adoro meu consultório porque ali esqueço do mundo e só penso no problema dos pacientes. Lá eu me realizo e trabalho com gosto. A gente deve se sentir útil.

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